Por Liege Albuquerque; a autora é mestre em ciências políticas pela USP e jornalista com diploma da UFAM.
Jamais deixaria de votar em uma eleição. É a maior conquista democrática que temos, o direito ao voto. Mas a obrigação de votar tira o equilíbrio da democracia, é uma excrescência. O voto obrigatório, junto ao financiamento de grandes empresários ou o financiamento público de campanhas, faz com que a corrupção na política já aconteça antes de o político ser eleito, com a compra de votos, com os donos dos partidos beneficiando campanhas com dinheiro público aos escolhidos, com a política do toma lá dá cá antes da eleição: “você paga minha campanha e te favoreço nas licitações quando eleito” e por aí vai.
A reforma política tramita pelo Congresso há décadas e não há a menor vontade política de os parlamentares votarem contra seus privilégios, o maior, o voto obrigatório que produz tanta sujeira. No texto da reforma há emendas contra o voto obrigatório, que favorece o voto de cabresto, contra as imoralidades que são os auxílio moradia, auxílio paletó, previdência e plano de saúde cheios de luxos. Aprovaram a da previdência, a tributária está na fila, mas e a política? Não interessa a eles, é lamentável que a gente (nós, os cidadãos) se cale a isso.
O financiamento público de campanhas faz o Brasil acumular mais de 30 partidos ávidos por fazer o número mínimo de eleitos para ter direito ao dinheiro público, gordo dinheiro, na conta deles. Hoje o partido Novo, ao qual não me alinho ideologicamente, é o único que recusa receber esse dinheiro público (e nem consegue devolver o dinheiro). Mas ao mesmo tempo, tem dificuldades de se fazer crescer, porque exige mensalidade de seus filiados e uma taxa de 350 reais para um candidato a vereador, e mais 4 mil se ganhar esta primeira disputa interna.
Não acho errado, mesmo, mas será bem difícil essa transição do tudo de graça ao pagar para uma agremiação política, obviamente nesse nosso caso do Novo vai atrair só a elite que pode pagar. Mas torço para que seja o futuro dos partidos no país, cada um com sua ideologia, claro, mas mantidos por doações de seus partidários e não por dinheiro público.
Quem quer ver como se conquista uma campanha num país onde não é obrigatório votar e o dinheiro público para campanhas vem minguando vá ao Netflix, com o documentário incrível Knock down the house. Nele a diretora Rachel Lears e equipe seguiram os passos de quatro mulheres corajosas que ousaram desafiar o establishment de direita nas eleições legislativas de 2018 nos Estados Unidos. Só a jovem Alexandria Ocasio-Cortez teve sucesso e a mim, a julgar pelas provas que já desconfiava de tudo que tenho lido sobre ela, é muito fácil ver as razões de sua vitória.
Uma delas é estar claramente representando uma parte da população de Nova Iorque, uma grande parte, que nunca se viu representado nas eleições. Outro fato é que, das quatro, só Alexandria fez um curso de formação política, inscrita por seu irmão, o Brand New Congress, uma espécie de Renova BR, mas no caso americano ligado a um político, Bernie Sanders.
Outro ponto relevante é a garra, a vontade de ganhar de Alexandria, sua capacidade incrível em não ter vergonha de knock knock nas casas das pessoas para pedir votos, num país onde não é obrigatório votar. Quem sai de casa para votar é porque realmente acredita em quem está no poder e quer mantê-lo ou porque realmente quer mudança. E ainda mais: o cidadão banca as campanhas com doações.
No périplo de Alexandria por votos no corpo a corpo, alguns aceitavam seus panfletinhos e guardavam, outros davam rabissaca, e outros aceitavam e jogavam na lixeira mais próxima (ao menos não era no chão). Difícil, viu? Guerreira. Há uma frase de Alexandria a uma colega na disputa muito emblemática na relação desses novos nomes da política, especialmente mulheres, muito óbvia e dura, mas real: “A realidade é que, para que um de nós consiga, centenas de nós precisam tentar.”
O fato de a maioria dos países pobres e corruptos na política do mundo terem o voto como obrigatório não é coincidência. Diz muito sobre as dificuldades que temos em tocar governos sem pipocar ali e acolá denúncias de corrupção, porque a raiz da corrupção já está na compra do voto. Por fim, ainda sugiro outra série envolvente no mesmo canal de streaming The Politician, uma ficção de um estudante de high school obcecado em ser presidente dos EUA e que até tenta, mas não consegue comprar votos para ser presidente da escola de jeito nenhum. Lá vale muito mais o gogó e o poder de persuasão, até na ficção.
P.S. Outro documentário imperdível e cheio de lições é o “Código Bill Gates” doc de três capítulos. Conta um resumo da biografia de Bill Gates, entremeando com as ações beneficentes de sua fundação, que toca lindamente com Melinda. Bill poderia estar, como alguns ricos de Manaus, pescando prostitutas em iates no rio Negro, enquanto Melinda poderia estar torrando grana em bregas bolsas com a griffe aparente. Mas não. Se ocupam, ambos aposentados dos negócios, em tentar resolver as mazelas do mundo. Investem milhões em cientistas pelo mundo afora atrás de soluções baratas para o saneamento básico, para erradicar doenças de pobre (causadas pela falta de saneamento) ou buscar alternativas de energia menos nocivas ao meio ambiente. E o melhor de tudo: têm grana, muita, para tentar mudar o mundo sem precisar entrar na política partidária.