Foi como um sequestro de nossas vozes e de todos os instrumentos. Uma violência digna apenas do mais profundo silêncio.
Provavelmente quando a primeira flor do mundo se abriu na Amazônia, reinava um silêncio cretáceo. O homem descobriu como manipular o fogo no mais profundo silêncio de seu tempo. Nascemos e morremos sem uma trilha sonora que nos roteirize. Nos momentos de maior tristeza ou alegria, imagens e cheiros é que realçam nossa memória.
Desde a invenção do cinema, aprendemos a nos emocionar, condicionados a um fundo musical delicadamente escolhido. O cinema nunca foi verdadeiramente mudo. Sem vozes de atores, deixamos escorrer lágrimas sofridas com os acordes finais das Luzes da Cidade, de Chaplin. É natural emocionar-se, ainda que sem empatia pelo protagonista. Mesmo sem ter Aids, La mamma morta arrancou suspiros até dos mais durões, no filme Philadelphia, que contou a história de um homem que sucumbiu ao vírus.
Mesmo na época em que não se projetavam os libretos das grandes óperas, em uma tela, acompanhar horas a fio as quatro óperas do Anel do Nibelungo, de Richard Wagner, sempre foi deleite exclusivo dos nossos ouvidos. Melhor até que não se ouça o conteúdo e, porventura, se descubra ali algum conteúdo politicamente incorreto.
Darcy Ribeiro pediu que, durante seu funeral, os convidados ouvissem, de forma ininterrupta, os concertos de violoncelo de Bach. Optou pela dor encarnada, e não pelo silêncio atroz destes momentos de passagem. Uma tia querida perdeu a filha e o marido em um acidente automobilístico. No carro capotado, que se enchia de água, em inigualável tragédia, a fita cassete gasta reproduzia o coral da Missa Longa em Dó Maior, de Mozart. Foi a última memória que teve dos entes mortos, memória que até o dia presente lhe rasga a alma.
Festas de aniversário, reuniões de família, casamentos, são todos eventos em que preenchemos o ambiente com canções que pretendem nos marcar de alguma maneira. Evitando o silêncio absoluto do universo infinito, nossas caixas de som são cada vez maiores e mais potentes. Mas os momentos marcantes da nossa vida ainda são celebrados com silêncio, como o primeiro beijo e o primeiro amor.
Durante a maior pandemia das nossas vidas, muitas vozes se calaram, teatros foram trancados, e a música diminuiu seu volume. Por muitas vezes eu tentei ouvir alguma música como consolo da dor, mas o silêncio me pareceu uma atitude mais digna.
Muitos de nós se lembrarão, um dia, de alguma canção no rádio despretensioso, durante as manhãs em que saíamos para ver pacientes em casa. Eu apenas me lembro do silêncio das ruas, do silêncio dos lares, dos condomínios mudos. Foi como um sequestro de nossas vozes e de todos os instrumentos. Uma violência digna apenas do mais profundo silêncio.
Homens e mulheres morreram no silêncio mais indigno, sem ar. Mortos pela Covid-19 sempre merecerão meu mais profundo silêncio, não apenas por um único minuto, mas o silêncio que for necessário para que a gente volte de novo a cantar. Todos acreditamos que a pandemia ia passar rápido, mas não foi tanto assim, foi ‘Allegro ma non troppo’. Ela marcou a todos, de um jeito ou de outro, por um tempo desgraçado e desumano. A desgraça só terá fim quando a vida virar de novo um filme, desses em que choramos ao final, mas de alegria. Nossa alegria ainda é parcial e incerta, estamos alegres, ma non troppo.
A imagem que ilustra esta crônica é Chuva (1953), do artista plástico brasileiro Oswaldo Goeldi