Entre grades e togas: a metáfora de Alfonsina e a presença feminina no Judiciário

Por Giselle Falcone Medina, advogada, Juíza titular (classe dos advogados) e Ouvidora do TRE-AM. Ex-diretora da Escola Judiciária Eleitoral e, por duas vezes, ex-conselheira da OAB/AM

Giselle Falcone Medina
15/09/2025 às 12:26.
Atualizado em 15/09/2025 às 12:28

A poeta suiça radicada na Argentina Alfonsina Storni (Foto: Reprodução)

Disseram a Alfonsina Storni, poetisa argentina do início do século XX, que mulher que pensa seca os ovários. Que nasceu para produzir leite e lágrimas, não ideias. Que deveria viver atrás das cortinas, servindo e sendo observada, jamais escrevendo. Ela não acreditou. E ainda bem.

Alfonsina, que trabalhava no que aparecia, criou sozinha um filho tido fora do casamento e escrevia versos roubando formulários de telégrafo, deixou como legado palavras que atravessaram gerações. Entre elas, o célebre poema em que implora:

“Homem pequenino, homem pequenino,

solta teu canário que quer voar…”

O canário de Alfonsina é a metáfora de milhões de mulheres que, ao longo da história, foram confinadas em gaiolas sociais, jurídicas e culturais. Mulheres privadas de escolher, de existir e de ocupar espaços de poder. A luta pela liberdade não foi dádiva, sempre foi conquista.

Esse mesmo voo tardio e custoso pode ser visto na trajetória da participação feminina no Poder Judiciário brasileiro. Durante séculos, a toga foi um espaço masculino. Às mulheres, restava o papel de espectadoras, muitas vezes invisíveis, observadas “por trás da persiana”. Apenas com a Constituição de 1988 e a redemocratização do país, o Judiciário passou a ser pressionado a abrir suas portas ao ingresso feminino em maior número.

Mesmo assim, a presença de mulheres em tribunais superiores e cortes eleitorais ainda é desigual. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que, embora as mulheres sejam maioria na população e na graduação em Direito, representam menos de 40% da magistratura nacional. Em tribunais de cúpula, o número é ainda menor. Muitos já conseguiram romper a barreira de gênero no quinto constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), abrindo espaço para advogadas assumirem cadeiras históricas. Mas outros permanecem intocados. É o caso do Tribunal de Justiça do Amazonas, que até hoje nunca teve uma desembargadora oriunda do quinto da advocacia. O espaço da toga continua, em muitos aspectos, sendo uma gaiola.

Mas a metáfora do canário insiste em nos lembrar: cada mulher que alcança um cargo de decisão abre a porta para que outras também voem. A juíza que se torna desembargadora, a advogada que ocupa o quinto constitucional, a primeira mulher a integrar determinado tribunal, todas elas carregam nas asas não apenas a própria trajetória, mas também a possibilidade de que outras venham depois.

O Judiciário brasileiro ainda precisa aprender a lidar com seus próprios silêncios e resistências. O patriarcado, como dizia Alfonsina, não gosta de canários soltos. Mas a história mostra que, assim como a poeta argentina, as mulheres não pedem licença para existir. Elas forjam caminhos, transformam dor em palavra e palavra em mudança.

Na poesia, Alfonsina pediu que soltassem o canário. No Judiciário, as mulheres já estão abrindo a gaiola.

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