Da tutela à autodeterminação

O percurso histórico da mulher contra a opressão intelectual e a apropriação do corpo

Por Giselle Falcone Medina, advogada, Juíza titular (classe dos advogados) e Ouvidora do TRE-AM. Ex-diretora da Escola Judiciária Eleitoral e, por duas vezes, ex-conselheira da OAB/AM

Giselle Falcone Medina
23/07/2025 às 14:51.
Atualizado em 23/07/2025 às 17:41

Durante séculos, a história foi escrita por mãos masculinas, e com frequência, contra as mulheres. Na Roma antiga, a mulher era vista como um ser tutelável, naturalmente subordinado ao homem. Cícero, um dos mais reverenciados oradores e juristas da antiguidade, chegou a justificar que mulheres deveriam ser submetidas a guardiões masculinos devido à “debilidade de seu intelecto”.

Não era apenas o corpo da mulher que era controlado: sua razão, sua palavra e sua existência autônoma eram negadas. As romanas passavam das mãos do pai às do marido, como se fossem propriedade transferida, com ou sem dote, com ou sem consentimento. Mesmo entre pensadores como Aristóteles, a mulher era considerada biologicamente inferior, dotada de menos dentes e de menos cérebro, tornando-se impura durante o ciclo menstrual, quando, diziam, sua simples presença podia azedar o vinho, secar as sementes e enlouquecer os cães.

Essas ideias não ficaram sepultadas nas ruínas do Império Romano. Elas atravessaram os séculos. Sustentaram décadas de opressão, legitimações jurídicas da desigualdade e, até hoje, ecoam em estruturas sociais e institucionais que resistem à plena equiparação de direitos entre os gêneros.

A mitologia da inferioridade feminina foi útil e funcional à manutenção do poder patriarcal. Ao se negar às mulheres a razão e a voz, naturalizou-se a sua exclusão do debate público, do espaço de decisão, do exercício da cidadania plena. Elas foram consideradas perigosas quando menstruadas, histéricas quando críticas, frígidas quando não desejavam ou devassas quando desejavam demais. Sempre catalogadas, sempre subjugadas.

Mas essa narrativa está sendo reescrita.

Hoje, o protagonismo feminino resiste e reconstrói sentidos. Mulheres juristas, filósofas, líderes, professoras e tantas outras ocupam os espaços que lhes foram negados por séculos, não como concessão, mas como conquista. E é fundamental reconhecer: não se trata apenas de presença física, mas de restituição simbólica, de reparação histórica, de liberdade intelectual.

Enquanto houver vozes que ecoam à sombra dos velhos Cíceros, haverá também vozes que os contestam. A mulher não é menos capaz. Nunca foi. E toda tentativa de calar, conter ou subjugar o feminino é, em essência, uma afronta à dignidade humana.

Reescrever a história é dar às mulheres o lugar de onde jamais deveriam ter sido expulsas: o de sujeitos plenos da razão, da escolha e do destino.

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