Construir sobre os olhos d’água virou selo de qualidade na concepção do sistema e dos seus braços realizadores.
(Imagem gerada por IA/ChatGPT)
Há um ano e um mês, em 28 de setembro de 2024, a professora e mestra em História Social Clarice Gama da Silva Arbella, Clarice Tukano, perguntou: "O que estamos fazendo para impedir a destruição do olho d’água?".
O questionamento veio após demonstrar à plateia a pouca ou nenhuma importância dada ao fato de os humanos e seus agenciamentos "construírem em cima dos olhos d’água".
Clarice Tukano participava, em Manaus, como expositora, de um encontro de formação sobre água e direitos humanos. Ao colocar o olho d’água no centro da reflexão e dos debates daquele encontro, ela chamava atenção para um ente vivo em processo de morte cotidiana sem que seus gritos e lágrimas consigam mobilizar setores da sociedade em defesa desses olhos.
O desconhecimento e a falta de curiosidade – passo valioso na busca do conhecer – tornam-se parte do pacto de silêncio sobre a matança dos olhos d’água. Ajudam a cultura da destruição dos bens naturais realizada por megaprojetos de "desenvolvimento", modelos questionáveis de políticas públicas de moradia, conglomerados expansionistas impostos às cidades e aos seus habitantes.
Sim, o fim do olho d’água é parte da estratégia de produção do esquecimento e do distanciamento como prática do modelo hegemônico em vigor. Por essa lógica, ele não deve ser conhecido, apreciado, compartilhado tanto quanto correm freneticamente as suas águas límpidas e frias tal qual um banho de cura nos corpos cansados e adoecidos dos humanos ou na algazarra das crianças quando entram em contato com ele.
O olho d’água é incompatível com o capitalismo, precisa ser morto para esse sistema econômico-político e cultural triunfar na aridez dos por ele abarcados.
Construir sobre os olhos d’água virou selo de qualidade na concepção do sistema e dos seus braços realizadores. Não há escuta à sonoridade das águas se espalhando e desenhando caminhos. Há soterramento, concretagem e asfixia. Assim é feito na cidade de Manaus intitulada "capital da Amazônia", como referência cada vez mais mercadológica do que a da porção da Natureza nela habitada.
O olho d’água é uma nascente, aparece na superfície do terreno de um lençol subterrâneo, e dá origem a cursos d’água ou rio. É nesse olho que se inicia o curso de água. Ou na poesia do fotógrafo e militante socioambiental é:
Quem se importa? Nesse momento, olhos d’água estão sendo massacrados em nome de mais uma obra. O som da água do olho já não é escutado porque o barulho da máquina silencia os outros sons das vidas banhadas por essas águas que nos solham. Nós morremos um pouco com o fim dele.