OPINIÃO

Quanto custa a morte do olho d’água?

Construir sobre os olhos d’água virou selo de qualidade na concepção do sistema e dos seus braços realizadores.

Por Ivânia Vieira
30/10/2025 às 10:09.
Atualizado em 30/10/2025 às 10:13

(Imagem gerada por IA/ChatGPT)

Há um ano e um mês, em 28 de setembro de 2024, a professora e mestra em História Social Clarice Gama da Silva Arbella, Clarice Tukano, perguntou: "O que estamos fazendo para impedir a destruição do olho d’água?".

O questionamento veio após demonstrar à plateia a pouca ou nenhuma importância dada ao fato de os humanos e seus agenciamentos "construírem em cima dos olhos d’água".

Clarice Tukano participava, em Manaus, como  expositora, de um encontro de formação sobre água e direitos humanos. Ao colocar o olho d’água no centro da reflexão e dos debates daquele encontro, ela chamava atenção para um ente vivo em processo de morte cotidiana sem que seus gritos e lágrimas consigam mobilizar setores da sociedade em defesa desses olhos.

O desconhecimento e a falta de curiosidade – passo valioso na busca do conhecer – tornam-se parte do pacto de silêncio sobre a matança dos olhos d’água. Ajudam a cultura da destruição dos bens naturais realizada por megaprojetos de "desenvolvimento", modelos questionáveis de políticas públicas de moradia, conglomerados expansionistas impostos às cidades e aos seus habitantes. 

Sim, o fim do olho d’água é parte da estratégia de produção do esquecimento e do distanciamento como prática do modelo hegemônico em vigor. Por essa lógica, ele não deve ser conhecido, apreciado, compartilhado tanto quanto correm freneticamente as suas águas límpidas e frias tal qual um banho de cura nos corpos cansados e adoecidos dos humanos ou na algazarra das crianças quando entram em contato com ele.

O olho d’água é incompatível com o capitalismo, precisa ser morto para esse sistema econômico-político e cultural triunfar na aridez dos por ele abarcados.

Construir sobre os olhos d’água virou selo de qualidade na concepção do sistema e dos seus braços realizadores. Não há escuta à sonoridade das águas se espalhando e desenhando caminhos. Há soterramento, concretagem e asfixia. Assim é feito na cidade de Manaus intitulada "capital da Amazônia", como referência cada vez mais mercadológica do que a da porção da Natureza nela habitada. 

O olho d’água é uma nascente, aparece na superfície do terreno de um lençol subterrâneo, e dá  origem a cursos d’água ou rio. É nesse olho que se inicia o curso de água. Ou na poesia do fotógrafo e militante socioambiental é:    

{...}Olho d’água que desliza lentamente rumo ao rio
surge minúscula nas entranhas do beiradão
e se transforma em riachos, igarapés e rios
que nas enchentes abrem furos e paranás
e se espraiam nas margens da floresta formando
belos igapós {...}.

 Quem se importa? Nesse momento, olhos d’água estão sendo massacrados em nome de mais uma obra. O som da água do olho já não é escutado porque o barulho da máquina silencia os outros sons das vidas banhadas por essas águas que nos solham. Nós morremos um pouco com o fim dele. 

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