Desde o início de sua atuação, a Humaniza tem buscado ouvir e dar voz a mulheres que trazem em seus relatos de parto histórias de maus tratos, erros e torturas, de dores, perdas e humilhações, por vezes mais trágicas que qualquer enredo que possamos recordar.
São narrativas que denunciam condutas desumanas praticadas durante o atendimento obstétrico, atitudes desrespeitosas e prescrições já não recomendadas por diversos órgãos internacionais, inclusive a Organização Mundial de Saúde e nem mesmo pelos protocolos nacionais de atendimento e publicações científicas de peso acadêmico.
Após a realização da Audiência Pública, em 19/02/2020, uma Ação Civil Pública (ACP) promovida pelo Ministério Público Federal e pelo Ministério Público Estadual, na 3ª. Vara Federal, fez ecoar mais de 200 denúncias de mulheres de todo o Estado do Amazonas contra as práticas violentas experienciadas nas maternidades estaduais e municipal, públicas, privadas e militares.
A ACP foi recebida pela juíza titular da 3ª Vara Federal, que já realizou duas audiências de conciliação, nas quais foram debatidas formas e estratégias para a redução dos índices de morte materna e neonatal, bem como medidas para garantir não apenas a apuração de denúncias (inclusive com o fortalecimento do papel das Ouvidorias), mas para o desenvolvimento de um atendimento ao parto, à mãe e ao recém-nascido, de fato pautado no bem estar obstétrico cientificamente saudável, comprovado e praticado, considerado como “humanizado”.
Por solicitação do próprio Ministério Público Federal, a Humaniza apresentou no processo da Ação Civil Pública o pedido para participar como “Amiga da Corte” (tradução livre de amicus curiae), pedido este que foi considerado legítimo pela douta Magistrada, ao entender que o tema tratado no processo detém relevante importância social e que a Humaniza detém a representatividade adequada.
Nesse processo, conforme determinou a juíza, a participação da Humaniza inclui a presença nas audiências e manifestação com o intuito de trazer subsídios, inclusive sob o aspecto técnico, para desenvolver o debate interno na análise dos fatos narrados no processo enquanto atos de violência obstétrica.
Para fins de delimitação conceitual, por ora, percebamos a violência obstétrica como um ato que pode ser praticado por qualquer profissional, da saúde ou não, em qualquer ambiente de atendimento, particular ou público, contra mulher[1] em estado gravídico, em trabalho de parto, processo de abortamento ou durante o puerpério[2].
Fazemos questão de recordar o conceito, de delimitar e enfatizar, para que ele, uma vez nomeado e descrito, possa ser reconhecido e erradicado. Assim, perdoe leitor, se nos fazemos por demais repetitivas.
Na audiência realizada, a Humaniza manifestou-se pelas palavras de sua Presidenta, trazendo ao conhecimento da juíza casos marcantes de violência obstétrica que resultaram em morte materna, no intuito de refletir uma triste realidade quando se trata do tema: há mulheres e bebês morrendo em números alarmantes.
E, de outra sorte, se não a morte, a dor. Diversas mulheres compartilham o seu mal estar, os problemas de saúde física e psicológica que ainda enfrentam em virtude do parto cujo modelo de atendimento violento resultou em sequelas, muitas irreversíveis.
É nesse contexto que a Humaniza percebe curso do processo da Ação Civil Pública, compreendendo que representa um meio de controle, pelos órgãos fiscalizadores da lei, com uma performance magistral por parte da juíza titular, de que os direitos das mulheres, inclusive seus direitos reprodutivos, sejam validados nas maternidades do Estado do Amazonas.
O processo, atualmente, conta com a participação do Estado do Amazonas (tendo o Secretário de Saúde comparecido à última audiência), a União, o Ministério Público do Estado do Amazonas e o Ministério Público Federal, a Associação Humaniza – Coletivo Feminista como amicus curiae e, por fim, foi aceita também pela juíza a participação do Conselho Regional de Medicina do Estado do Amazonas como “Amigo da Corte”.
Que possa ser mantida, em cada trâmite processual, a confluência de sugestões de todos os órgãos envolvidos, com o intuito de erradicar todo atendimento que possa ser considerado violento ao parto. Seguimos!
[1] Com a devida ressalva ao fato de que, neste caso, a terminologia binária “mulher” deve ser ampliada a todos os corpos que esteja em estado gravídico, trabalho de parto, abortamento ou puerpério, dentre os quais fazemos questão de mencionar, inclusive, o homem trans que tenha decidido pela gestação em seu útero.
[2] A Lei Estadual 4.848/2019 prevê que: “entende-se por violência obstétrica a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, que cause a perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres durante o pré-natal, parto, puerpério ou em abortamento, que cause dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher, praticada por membros que pertençam à equipe de saúde, ou não, sem o seu consentimento explícito ou em desrespeito à sua autonomia”.