Decisão do magistrado vem num momento em que o “ativismo judicial” se mostra cada vez mais prejudicial ao Estado Democrático de Direito e à separação dos poderes
(Foto: André Alves )
A ação do Ministério Público do Amazonas em favor do “lockdown” em Manaus teve um único efeito prático: acentuar a corrida desenfreada aos supermercados. Na tarde e noite desta quarta-feira (6), filas gigantescas, muito além do normal para o período, se formaram em vários supermercados. O sentimento entre os clientes era o mesmo: o medo da despensa vazia e de não encontrar itens básicos nas prateleiras, amanhã.
Além de pedir a limitação da circulação de pessoas e de veículos particulares nas ruas, a fim de alcançar isolamento social de “no mínimo” 70%, o MP queria barrar a circulação de pessoas em padarias, lojas de conveniência, lojas de bebida, gás de cozinha, oficinas, lavanderias, pet shop, lojas de material de construção, de tecidos e armarinhos. A proposta era que todos atuassem por drive-thru ou delivery.
Um dia após o pedido do MP, veio a resposta do Poder Judiciário, assinada pelo juiz Ronnie Frank Torres Stone, da 1ª Vara da Fazenda Pública. O magistrado dá aula de Direito, de cálculo e de bom senso para o período de crise, num momento em que o “ativismo judicial” se mostra cada vez mais prejudicial ao Estado Democrático de Direito e à separação dos poderes.
Absolutamente embasada, inclusive com dados não inseridos na ação do MP - o que deixou o magistrado claramente irritado - a decisão de Ronnie Frank Torres Stone fala por si e, nas entrelinhas, manda um recado contundente. Abaixo, abro aspas para as principais considerações do magistrado, que resumem a decisão de barrar a proposta de lockdown em Manaus.
“Quanto à fundamentação legal do pedido de tutela antecipada, tudo indica que os artigos mencionados na peça inicial dizem respeito ao CPC de 1973 - arts. 273, 287 e 798. Esse equívoco, contudo, em nada prejudica o conhecimento do pedido de tutela requerida, à luz do CPC vigente”.
“Ao se examinar os demais Decretos Estaduais constata-se que o Estado do Amazonas passou a adotar medidas de restrição já em 23 de março de 2020, com o Decreto 42.101/20, a exemplo: a) trabalho em home office no âmbito dos Órgãos da Administração Direta e Indireta do Poder Executivo (art. 1o); a suspensão do funcionamento de todos os estabelecimentos comerciais e de serviços não essenciais (art. 2o); assegurou os serviços de entrega à domicílio (art. 2o, §1o); restrição de atendimento em clínicas a situações de urgência (art.4o), etc”.
“Quanto às eventuais medidas adotadas ou deixadas de ser adotadas pelo Município de Manaus, verifica-se que a petição inicial nada diz de concreto, especialmente se houve ou não alguma espécie de regulamentação por parte do Executivo Municipal. Ademais, nenhum documento relacionado especificamente ao Município de Manaus veio aos autos do processo. Sequer relatórios dos sepultamentos realizados na Capital, especialmente no mês de março, abril e maio vieram para avaliação do Juízo”.
“O fato é que o Autor não trouxe nenhum dado oficial gerado, por exemplo, pelo Município de Manaus, seja em relação às ocorrências de Covid-19, seja em relação aos sepultamentos, o que obrigou este Juízo, mais uma vez, em razão da urgência e das circunstâncias, a tomar a iniciativa de solicitar, informalmente, acesso a dados do Município de Manaus que foram, prontamente, encaminhados, por e-mail, pelo Senhor Secretário da Semulsp e passam a integrar esta decisão”.
“A rigor, o que se pretende é substituir o poder de polícia à disposição do Gestor Público pela força de uma decisão judicial, ou seja, transferir para o Poder Judiciário a responsabilidade pela execução das medidas previstas nos decretos do Senhor Governador, o que é inaceitável por conta da distribuição de atribuições dos poderes constituídos, dentro do sistema constitucional vigente”.
“Não bastasse isso, pretende o Autor, com base em informações colhidas em links de internet e, por conta de um cálculo elaborado em uma calculadora epidêmica, que o Juízo determine ao Poder Público que submeta a população, pelo prazo inicial de 10 (dez) dias, a restrições mais severas - o famoso lockdown -, de modo que a circulação de pessoas seja reduzida a 70%, na Capital”.
“Ora, não cabe ao Poder Judiciário minorar ou agravar medidas de circulação de pessoas para a contenção de epidemias. A leitura dessas políticas deve ser feita por equipes técnicas que, diante de dados concretos, possam municiar as decisões a serem tomadas pelo Chefe do Executivo - difíceis decisões, por sinal, pois, de regra, não é possível se antever quais serão as suas consequências”.
“Já ao Poder Judiciário compete examinar, dentro do quadro constitucional, pontualmente, se as medidas contêm excessos que mereçam ajustes ou até supressão, mas nunca substituir a política adotada pelo Gestor Público por entender que ela não é bastante”.
“Apenas para argumentar, é bom lembrar que se ao Poder Judiciário coubesse a determinação de tais medidas, restariam as seguintes indagações: a quem caberá a correção dos excessos? Quem responderá pela adoção de medidas que, no futuro se mostrem equivocadas? Outros questionamentos poderiam ser colocados, mas deixemos esse debate para outro lugar e momento”.
“É de se respeitar a preocupação e iniciativa dos nobres Promotores de Justiça signatários da peça, mas é preciso, nesse momento de enorme tensão, que recai pesadamente sobre os ombros dos Chefes dos Poderes Executivo Estadual e Municipal, a serenidade para que possam refletir sobre os eventuais ajustes nas medidas de isolamento. Debate que deve ser amplo, com outros setores da sociedade, diante das consequências de toda ordem que resultam de restrições dessa natureza”.
“Diante do exposto, ainda que se entendesse possível ao Poder Judiciário determinar as severas medidas de restrição à população manauara, como pretendido pelo Ministério Público, está claro que não existem nos autos, até o presente momento, elementos mínimos que justifiquem a medida judicial requerida, em caráter antecipatório, motivo pelo qual indefiro a tutela”.
*André Alves é jornalista formado pela Ufam. Atuou em redações de jornais durante 16 anos. Foi repórter, editor-executivo e editor da coluna Sim&Não de A Crítica