Por Taciano Soares, ator, diretor, produtor cultural, professor universitário, Mestre em Cultura e Sociedade e Doutorando em Artes Cênicas pela UFBA.
((Foto: Larissa Martins))
Brasil, 2021. Qual o cenário que encontramos na cultura? De um lado: artistas de todas as linguagens impedidos de trabalhar, tendo que lidar com uma conta que não bate: 11 meses de pandemia x 6 parcelas de auxílio emergencial. Do outro: políticos mal-intencionados que se aproveitam do desastroso momento que vivemos para sugerir que a pasta da Cultura, detentora de menos de 1% do recurso – seja em esfera federal, estadual ou municipal, dê conta das necessidades que são da Saúde, transferindo a responsabilidade gerencial e financeira que o Estado não consegue assumir. De repente uma profusão de produções artísticas no ambiente virtual, mas sob quais condições? Quem tem a estrutura mais adequada para pensar a adaptação de sua linguagem para a internet? E mais: Para quem estamos fazendo?
Respiremos, se ainda for possível.
A Lei Aldir Blanc, por sua vez, chegou aos estados e municípios brasileiros no fim do ano de 2020, após longos meses de tratativas, como um respiro fundamental para o apaziguamento de uma fome que soterra o cenário cultural brasileiro desde tempos pré-pandêmicos. No entanto, não alcança a todos e nos lança em um grande desafio: como podemos produzir, lidar com prazos, prestar contas, ser empáticos, conscientes, nesse contexto, sem nos expor, sem morrermos? É preciso esperar passar? Aliás, seria esse o papel do artista? Silenciar-se e aguardar a normalidade retornar à vida social para que, então, ele possa voltar a criar?
Em pouco tempo de análise nos deparamos com esse dilema que se configura como moral, mas também jurídico, em decorrência das limitações que a regulamentação da Lei Aldir Blanc prevê, por exemplo, em relação ao prazo para execução dos projetos aprovados. Estamos em uma encruzilhada. Quando poderemos afirmar que não estamos mais em um estado de calamidade pública? Como artistas equilibram a necessidade de sobrevivência de si e dos seus, protegem-se do vírus que vem matando milhões de pessoas no mundo todo e, ainda, respondem a uma movimentação interna criativa que porventura exista ou surja, como acontece com essa classe odiada por uma fatia da sociedade que ignora sua dependência do consumo de arte e amada, por outra, quando lhes convém?
Qual o papel da arte na sociedade? Já se perguntaram isso hoje? Em tempos de isolamento (para aqueles poucos conscientes que o praticam), experimentem perguntar ao Sr. Google. Eu o fiz e, para minha surpresa, a primeira resposta que li foi algo mais ou menos assim: “A arte tem papel importante na sociedade para ressignificar e reciclar objetos que seriam descartados, reduzindo o acúmulo de lixo em nosso planeta.” Que curioso pensar na arte nesse papel de reciclagem. Então se de pronto tomássemos essa consulta nada profunda e pensássemos que artistas reciclam, como isso poderia dialogar com os tempos pandêmicos? O que temos a “reciclar”?
A realidade tem se apresentado como uma sucessão de choques e violências que sequer imaginaríamos passar. Os artistas, sem personificar a imagem de um em detrimento de outro, viveram bárbaros momentos que a história nos conta, atravessando gerações de guerras, mortes, pandemias, corrupção, ditadura, entre outras mazelas causadas pelo homem e tão somente por ele. Diante disso, vivemos um momento que nos coloca diante da experiência real construída, não mais imaginada a partir de literaturas, sobre o que fazer com tanta dor e com tudo o que nos atravessa cotidianamente.
Recentemente pude ver uma artista utilizando-se das redes sociais para hostilizar um posicionamento de outros artistas sobre a possibilidade de continuar “reciclando” as emoções e refletindo, através de uma obra de arte, as nossas possibilidades de existência e de humanidade. Ora, então quer dizer que um artista pode somente falar quando lhe for perguntado? Ou ainda, cabe a alguém determinar onde e como a arte existirá? Além das violências que temos lidado há anos, o desmantelamento do aparelho público da cultura, a ausência de políticas públicas que deem conta da subsistência da vida em tempos de morte, ainda precisamos que haja uma autorização àquilo que é a única coisa que ainda temos sem que nos tomem: a criação?
É possível uma mediação entre esses campos por onde passamos. O que temos da Guerra do Vietnã, para além dos relatos de dores que todos acessamos, são as imagens dispostas no Museu de Memórias da Guerra para que lembremos desse horror e a humanidade não permita decair em tão baixo nível novamente. A propósito, uma imagem emblemática desse nefasto acontecimento é uma fotografia, ganhadora do Prêmio Pulitzer, por exemplo. Ora, imaginemos nós que alguém tivesse dito que aquele não era o momento, que presenciar o horror não poderia servir como lugar de registro, tampouco de compartilhamento? Como poderíamos impedir que o olhar sensível de quem está diante de algo possa evitar o ato criativo? É preciso empenhar mais esforços que afastem o artista criador do seu ofício, tão diminuído nesse país contraditório e omisso?
Acredito que é preciso lutar, com as formas possíveis, pela manutenção da vida. Pela capacidade de nos afetarmos mutuamente e positivamente. Que seja bem vinda toda manifestação de sensibilidade e que possamos construir novas pontes a partir da experiência sórdida que nos trouxe até aqui. Ainda estamos lutando para sobreviver e essa sobrevivência é física, moral e artística. Menos julgamento e mais apoio pode ser um caminho favorável ao exercício contínuo de algo que temos perdido completamente: a noção de humanidade e a possibilidade real de construção de afetos mútuos.