No artigo desta semana, nossa colaboradora, a escritora Myriam Scotti, fala sobre como Manaus se preparou para celebrar os 95 anos do poeta amazonense
Por Myriam Scotti*
Há mais de setenta anos, quando publicou sua primeira coletânea, Thiago de Mello se dá inteiro e nos brinda com sua poesia insubmissa e encantadora,internacionalmente reconhecida.
Durante o mês de março, Manaus se preparou para celebrar os 95 anos do poeta amazonense, com uma programação que vai desde trechos de poemas impressos em ônibus, praças e viadutos da cidade, até vídeos na internet e na TV. Admiradora que sou de sua obra, não podia deixar de prestar minha homenagem neste espaço dedicado à literatura, até porque acredito que somente por meio dela, a palavra escrita e ficcionalizada, é possível provocar a compaixão do outro,o qual, desconcertado pela leitura, é impelido à reflexão.Além disso, o momento não podia ser mais oportuno, pois falar de Thiago de Mello, é também falar de resistência. Dia desses, escutando a fala de uma professora, ela citou um pensador, para quem “resistir é opor a força própria à força alheia.” E o que é a literatura senão resistência, senão luta, senão enfrentamento por meio da palavra?
Thiago, que renunciou a medicina para se dedicar à poesia, decidiu reagir usando o verbo:“Fica decretado; fica estabelecido; fica permitido; fica proibido...”, embora em tom de quem dita duramente, o poeta evoca o amor e a liberdade, rechaçando o anúncio do golpe de 64 e o consequente AI 1.Sua arma sempre foi a poesia e desse modo nos presenteou com Os Estatutos do Homem, poema que o consagrou como um dos maiores artistas literários do Brasil. Quando em solo brasileiro, Thiago de Mellofoi perseguido e por isso obrigado a se exilar, um hiato de dez anos, mas que também chamo de resistência. Afinal, permanecer vivo em tempos sombrios é, por si só, também resistir.Faz escuro, mas ele canta!
Sem se submeter à tirania da obrigação de calar, ainda que longe da pátria, o poeta escreveu, produziu, resistiu, transformando sua indignação em poesia, por saber que a palavra, se bem usada, liberta, e isso, meus caros, Thiago de Mello, ao longo de sua vida dedicada à literatura, fez com maestria. Por isso, não há dúvida de que seu legado há de ser eterno. Viva o nosso poeta!
Myriam Scotti nasceu em Manaus, formou-se em Direito pela Universidade Federal do Amazonas e exerceu a advocacia até 2010. A poesia chegou por acaso e em 2018 lançou “A língua que enlaça também fere”, reunião de seus poemas, pela editora paulistana Patuá. Além de livros impressos, a autora publicou diversos e-books pela plataforma Amazon.
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OS ESTATUTOS DO HOMEM
(Ato Institucional Permanente)
Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade. agora vale a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV
Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único:
O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino.
Artigo V
Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.
Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.
Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida,
uso do traje branco.
Artigo XI
Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.
Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.
Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.