Quem é porto de lenha, não precisa querer ser Liverpool

Por Taciano Soares, ator, diretor, produtor cultural, professor universitário, Mestre em Cultura e Sociedade e Doutorando em Artes Cênicas pela UFBA,

Taciano Soares
Taciano Soares
27/12/2019 às 13:22.
Atualizado em 24/03/2022 às 22:10

“Cultura não é só aquilo que você gosta”. Essa máxima tem ganhado força pelas redes sociais nos últimos anos e não é à toa. O legado recente em nosso estado diz muito sobre nós mesmos.

O passeio proposto aqui começa pelo título que faz menção à canção “Porto de Lenha” – parte de um poema de Aldísio Filgueiras, para falarmos sobre identidade cultural e como nosso ideal nacional foi sempre construído a partir de uma perspectiva europeizada, marginalizando a participação dos povos tradicionais durante esse processo e que, por si só, merece um texto à parte.

Há pouco mais de 100 anos o Brasil vivia o apogeu do ciclo da borracha e, com ele, as cidades de Manaus e Belém vivenciaram a versão brasileira e tão falada da Belle Époque (período de grandes transformações nos centros urbanos europeus, com intensa participação da cultura em um novo modo de pensar e viver).

Discorrer sobre a bela época, sobretudo na experiência em Manaus, nos faria desenvolver uma coletânea extensa de textos. O que nos move aqui é pensar como o estado do Amazonas foi fortemente influenciado na sua (re)composição cultural a partir desse movimento e como ele é visivelmente presente nos dias de hoje.

Fim do século XIX e início do século XX: O Teatro Amazonas era o palco central da coroação de uma cidade-espelho de suas riquezas exploradas. Manaus tinha mais do que os centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, possuíam então. Água encanada, rede de esgoto, bonde elétrico, palácios... A programação do imponente equipamento cultural era recheada de óperas (objetivo de sua construção) advindas da Europa, como tudo que se construíra naquele momento na cidade.

Aos poucos a separação social e econômica foi se tornando cada vez mais forte, de maneira que o acesso ao Teatro não era para todos. Pelo contrário, foi nas mesas de cabarés que se praticava uma espécie de cultura do divertimento, onde as manifestações eruditas davam espaço (ou mesmo misturavam-se) com paródias urbanas. Um renascimento da produção autoral local. Nesses lugares a população, em maioria, eram os trabalhadores de baixa renda.

Esse mesmo período histórico condicionou a sociedade a criar a ideia separatista de alta cultura em detrimento de algo que mais tarde seria chamado de cultura de massa. Um legado bastante nocivo é o fato de que, cada vez mais, a cultura do divertimento ganhou palco e adesão das massas populares devido às linguagens de fácil acesso e à massificação de sua produção. Em paralelo a isso, a produção artística feita em prédios (teatros, centros culturais, museus, cinemas) teve cada vez mais dificuldade de reaproximar o público que foi ensinado (estamos falando da maioria composta pelas classes econômicas mais populosas no Brasil) que aquele não é um lugar para se estar.

O presente que herdamos está nesse cenário que ainda se configura dissidente quando o juízo de gostos define o valor da manifestação e o lugar onde ela deve acontecer. Funk, forró, brega, samba e outros estilos musicais tidos como populares (porque advêm do povo brasileiro que os criou/modificou) são facilmente julgados como impróprios a determinados espaços da cidade.

É necessário redemocratizar esse pensamento que só contribui para o desmantelamento do ideal de democratização cultural, visto que a população, principal mantenedora desses mesmos espaços imponentes, muitas das vezes é a que menos usufrui por inúmeras razões. A demarcação desses territórios artísticos sob a égide de uma preferência de gosto, que diz muito mais sobre o poder aquisitivo de alguém do que mesmo o seu direito ao pertencimento, é a doença que precisamos nos curar.

Há um verdadeiro espectro sobre o palco do Teatro Amazonas, por exemplo, como sedimentação de determinadas manifestações artísticas. Como se isso fosse uma espécie de “coroação”. Mas afinal, quem ganha com esse acirramento de território? O público passa a crer que aquele palco é, necessariamente, sinônimo de qualidade (o que não depende disso, na verdade) e o artista entra em uma espécie de fila de atendimento para ganhar seu vale-dourado. Não me parece um movimento muito diferente de um centenário atrás. Não se trata de desmerecer a relevância, importância e beleza do teatro-museu, mas lembrar que a herança desse modelo de trabalho tem deixado muita gente sem ter como viver de seu ofício.

Mas, afinal, existe uma manifestação cultural maior ou menor? Sabemos reconhecer nossas raízes culturais, quando das nossas escolhas de consumo? Não somos, talvez, resultado de uma série de processos de imposição cultural? Não podemos negar o passado que nos conduziu até aqui, no entanto como construir um futuro com identidades mais sólidas da produção artística brasileira, protagonizada e pretendida pelo povo?

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