Estátuas como a de Borba Gato testemunham um tempo em que reverenciávamos nossos algozes: integrarem um acervo de museu serviria de alerta!
Em meio ao clima olímpico, à pandemia e ao complicado quadro político vivido pelo Brasil, dois fatos muito peculiares me chamaram atenção. Um foi o incêndio à estátua do bandeirante Borba Gato, erguida em 1957, na cidade de São Paulo. E o episódio vai de encontro a um movimento iconoclasta que toma conta do mundo, muito visto recentemente nos Estados Unidos e Europa, resignificando quem foi herói e quem foi vilão. Sobre Borba Gato pesa a acusação de invadir terras, escravizar indígenas e até de contrabandear ouro, longe do que se pode considerar um desbravador do país.
O ataque a momentos públicos não é algo novo. Já se viu a derrubada da estatua de Lênin, aliás de várias delas, desde a de Moscou, há 30 anos e demolição, nos anos 1990, do Muro de Berlin, o que não deixava de ser um marco histórico. Não há muito testemunhamos os ataques às estátuas de Winston Churchill em Praga e Londres, além da derrubada de uma série de imagens de escravagista, quando das manifestações do movimento “Vidas Negras Importam”. O mundo se expressa, querendo dizer a quem ele considera digno de homenagem.
Em termos de Brasil, não sei se sou a favor da simples queima ou da destruição das estátuas, mas concordo com a retirada delas do espaço público. Entretanto elas testemunham um tempo em que reverenciávamos nossos algozes: integrarem um acervo de museu serviria de alerta! Seria análogo às exposições dos objetos de tortura humana! É uma questão complexa demais e subverte a ordem de como “o coro dos contentes”, ordeiros e cordeiros ao que lhes convém, enxerga o mundo! O incêndio à estátua do bandeirante os incomoda, mas a destruição da placa da Rua Marielle Franco, com transmissão on-line, me parece que não!
Enquanto o sinistro na imagem do bandeirante foi pauta nacional, por aqui a pauta foi a lei aprovada na Câmara Municipal de Manaus para a troca do nome de um espaço público localizado na Praça 14 de Janeiro para Oscarino, o artista ventríloquo do boneco Peteleco, que habita o imaginário afetivo infantil de várias gerações, a maioria com mais de 40 anos. De autoria do presidente da CMM, o projeto de lei teve voto contrário do vereador William Alemão que, usando da lógica, afirmou que aquele espaço já tinha um homenageado, que seria melhor encontrar outro lugar. Mas o parlamentar presidente insistiu: “foi pedido da comunidade”.
Reduto da população preta, a Praça 14 tem uma história de resistência, de luta e de cultura, inclusive com um dos primeiros quilombos urbanos reconhecidos no Brasil, o do barranco de São Benedito. E o homenageado que deveria ser “desomenageado” para dar lugar à vontade de um parlamentar - pois de certo não era a da comunidade do bairro - é Nestor Nascimento, um dos maiores militantes em favor da igualdade racial no Amazonas, criador e ativista do Movimento Alma Negra.
Nestor foi um intelectual de tantas virtudes e feitos que mereceria uma crônica só dele, com a suavidade e firmeza que ele tinha para nos explicar a questão da alma negra e os seus porquês estéticos e raciais. Tive a honra de conhecê-lo em vida e de trocar algumas ideias com ele. Mas se não fosse o movimento de mulheres “Crioulas do Quilombo”, junto com os moradores do bairro e os amigos do homenageado talvez a questão passasse batida e a memória de Nestor teria sido depreciada.
Agora farão uma lei para desdizer a lei anterior, e houve até barraco no sarau promovido pelos moradores do bairro em homenagem a Nestor e em protesto à mudança de nome.
Não me surpreendo com o episódio, mais um para uma lista infinita de deslizes do parlamento manauara desde janeiro deste ano. Mas me incomoda a falta de informação, entre outras coisas, da suposta maioria do legislativo municipal. Aliás, tivemos uma paralização de alerta do sistema público de transporte de Manaus na semana que passou. Duas empresas saíram do sistema. O que foi feito na CMM em relação a isso? #Pensa