A maior árvore de Natal da minha vida invadiu nossos olhos, arrancou sorrisos e trouxe esperança
Naquele mesmo dia, um ano antes, tivemos a pior experiência das nossas vidas. Meus avós, gripados há mais de uma semana, iam a pé, a cada dia, no posto de saúde perto da beira. Pouco pudemos fazer por eles, antes de que fossem carregados pelos vizinhos, até a lancha, a ambulância da nossa comunidade. Como muitas crianças curiosas da minha idade, segui o cortejo até a partida. Na última vez que vi meus avós vivos, seus olhos, acima das máscaras, se despediram de mim. Naquele mesmo dia, recebemos a notícia de suas mortes, na porta de um grande pronto-socorro da cidade de Manaus. Não havia camas disponíveis nos hospitais, e as pessoas que eu mais amei na vida tiveram suas vidas apagadas.
Desde então, meu pai não parou de beber. Seus pais, migrantes nordestinos do fim do ciclo da borracha, eram sua bússola. Sem aulas na escola, ficamos em casa a maior parte do tempo. O ambiente era pesado, constrangedor. Eu e meus irmãos não sabíamos mais o que fazer para ajudar. Algumas noites, ele gritava com minha mãe e, em muitas delas, deixava marcas no seu corpo. Cada vez que eu assistia àquela cena, era como se parte de mim também se quebrasse por dentro. Minha mãe, envergonhada e sentida, se deitava na rede, calada, e não raras vezes deixava de cozinhar. A vizinhança era muito solidária e não nos deixou faltar nada.
A Comunidade de Nossa Senhora de Fátima estava muito perto de Manaus, uma cidade grande demais para conseguir enxergar seu entorno. O jeito mais fácil de acessar nossa vila era por via fluvial. Ali na beira, a poucos minutos da capital, um novo fuso horário de oportunidades e de necessidades humanas.
Mas naquele dia frio, em tempo de águas baixas e calmas, a memória dos mortos pela Covid-19 voltou a nos atormentar. Meu pai bebeu ainda mais. Sem emprego e endividado, passava por nós como se não estivéssemos ali. Vez por outra, esbarrava em um móvel da casa e deixava cair algum objeto, para ele já sem valor. Minha mãe havia preparado uma caldeirada de tucunaré. A farinha era nova e cheirava bem.
Da porta de casa, então, ouvimos um banzeiro diferente. Algumas crianças perceberam algo de estranho no ar. Adultos na porta das casas começaram a digitar mensagens em seus telefones celulares. Todos estavam agitados, mas ninguém sentia medo. Era como se o inesperado, um ano depois, nos alcançasse. Os vizinhos da casa ao lado correram em disparada, com um bebê no colo. Dona Nélia, da casa da frente, gritou: ‘Vamos, chegaram!’.
Com tanta gente correndo em direção à beira, eu, minha mãe e meus irmãos fomos também, com passos lentos ainda, sem saber o motivo de tanta euforia. ‘O que está acontecendo?’, perguntou minha mãe, cautelosa. ‘Não sei, mas tem gente lá na beira, parece que é da prefeitura’. Andando com curiosidade e com o coração batendo mais acelerado, ouvi uma música improvável.
Sobre as cabeças aglomeradas, vi se aproximando luzes que clareavam o céu nublado. Elas iam crescendo cada vez mais. Da minha altura, encoberto pelos comunitários, vi a maior árvore de Natal da minha vida. Ela invadia nossos olhos e o sorriso das pessoas ao meu redor pacificava a sensação do incompreendido. Uma gigantesca balsa flutuava sobre as águas negras e misteriosas do Rio Tarumã Mirim. A imensidão das cores e das formas que se aproximavam da gente, numa marcha lenta e ritmada, parecia trazer de volta o que um dia fora embora de vez. Sentado na varanda do posto da malária, no alto, ao lado de cães que eram alimentados pelos funcionários do posto, não contive o choro.
Depois de nos saciar, voltamos mais leves para casa. Ao entrar, contei para meu pai sobre a balsa natalina que tinha vindo nos visitar naquela noite. Ele olhou para mim, depois de muito tempo, passou a mão na minha cabeça e, com os olhos marejados, entendeu que a esperança havia novamente voltado ao seu lar. Mesmo sem ter descido até à beira, refletiram-se nele as luzes que chamuscaram nossos olhos. Ele acreditou na gente e novamente se sentiu forte para seguir sua missão. As luzes, que navegaram sobre as mesmas águas que levaram seus pais, foram sua mensagem de vida.
Foto: João Viana/Semcom