Vamos à Floresta?

Para alguém como eu, com 55 mil quilômetros rodados em agosto, que viveu cultura no coletivo, viver ao vivo e em voz alta é insubstituível 

Orlando Câmara
Orlando Câmara
15/05/2021 às 10:35.
Atualizado em 24/03/2022 às 21:50

Passei a semana pensando no nosso consumo de cultura e no acesso à informação. Em tempos de pandemia, brota uma necessidade enorme de programações culturais e de entretenimento que escapem à virtualidade das “lives”, tão necessárias, mas que eu já não aguento mais. Sim, ainda não é hora de se abrir os lugares todos, mas que dá saudade, ah isso dá - até para quem nem era tão frequentador assim. Um sentimento meio “Neymar”: saudade do que a gente não viveu!

Lembrei de como era quase que obrigatório no Rio de Janeiro dos anos 1980 o Caderno B do Jornal do Brasil. Havia um dia em que eles publicavam todos os programas possíveis para a semana inteira: cinema, teatro, exposições. A gente dobrava o jornal para levar na mochila ou no bolso e saber o que fazer a semana inteira. Uma fórmula tão bem sucedida que a Folha (de São Paulo) e o Estadão reproduziram e aperfeiçoaram nos anos 1990 e nos anos 2000. Os paulistas publicavam uma revista em formato de programa, cheia de serviço de cultura e entretenimento, inclusive com dicas de gastronomia pela cidade.

Outra recordação boa foi a do projeto “Vá ao Teatro”, na década de 1980, na capital carioca. Havia kombis espalhadas em pontos chaves da cidade vendendo ingressos de teatro e distribuindo agendas de espetáculos. E as pessoas que atendiam naquelas espécies de funtrucks eram super engajadas, descoladas. Depois de cinco minutos, você comprava os ingressos que queria, a preço popular, e já queria comprar outros.

Mas isso tudo funcionava numa época em que o papel não era vilão ambiental e que a vida não era virtual. Era real, imediata e sem uso de celular, pelo menos para internet. De lá pra cá, tudo mudou. Hoje existem sites, aplicativos, web pages e todos o recursos digitais que fazem esse serviço - ou pelo menos pretendem fazer. Não quero ser saudosista - algo que eu particularmente acredito que nos desconecta da realidade - mas a impressão que eu tenho é que nosso consumo de cultura e entretenimento empobreceu muito, mesmo antes da pandemia.

Talvez seja porque o passar das décadas - quatro, desde 1980 - trouxe para dentro de casa possibilidades que antes eram outdoor, eram externas e nos impulsionavam ao consumo coletivo. A TV de led 4K, os aplicativos de streaming, os jogos on-line, os apps de entrega de comida...tudo isso, tão à mão e a domicílio, foi nos envolvendo num casulo doméstico de consumo de cultura que parece que a noite e seus prazeres ficou reservada aos baladeiros, e não ao cidadão comum. Os recursos tecnológicos nos dragaram para as nossas solidões tecnologicamente convenientes, símbolos de um status do contemporâneo.

Para alguém como eu, com 55 mil quilômetros rodados em agosto, que viveu cultura no coletivo; que viu a reação das pessoas àquela cena na sala de exibição; que bateu um papo com o diretor e com os atores depois da peça e; que viu o fotógrafo e o artista visual na exposição, viver ao vivo e em voz alta é insubstituível. 

Pessoalmente acredito que quando tudo isso passar - vacinados e com a cura - vamos à floresta porque queremos viver livres, viver profundamente, e sugar a própria essência da vida... expurgar tudo o que não for vida; e não, ao morrer, descobrirmos que não vivemos. Sim, tal qual Thoreau.

Serão necessários lugares a todos - e não apenas bares tocando forró, entupidos de gente de pelúcia, posando de Barbies e Kens, bebendo mais que opalas 6 cilindros. Serão necessários lugares para todo tipo de gente, inclusive as de verdade. Porque teremos sede de viver! Que venham esses tempos! #Pensa

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