Uniformes surrados e placas pelos corredores lembram a tragédia vivida meses antes de Vinícius nascer em Manaus
De uma forma mais agressiva e dolorida, a natureza poda a raça humana, assim como faz com as florestas, em grandes ventanias. De alguma forma, fortalece e faz com que novas folhas e ramos surjam, cada vez mais fortes. Só no Brasil, mais de 614.000 pessoas foram dizimadas por um novo vírus. Mas felizmente não paramos de procriar, repovoando a terra arrasada.
Neste dia 26 de novembro último nasceu, em Manaus, Vinícius. Nasceu em um hospital onde antes, virtualmente todos os leitos eram ocupados por vítimas da Covid-19. Hoje, se ele precisasse, teria oxigênio medicinal em abundância. Uniformes surrados e placas pelos corredores lembram a tragédia vivida meses antes.
Vinícius nasceu ouvindo os concertos de violoncelo de Bach. Encontrou seios fartos antes de se tornar uma estatística. Nasceu em uma época mercantilista, e imediatamente virou cliente de médicos, enfermeiros, fonoaudiólogos, técnicos e planos de saúde. Ainda na sala de parto, ouviu sobre a crise pós-pandemia, a alta do dólar, a inflação e o desemprego.
Não apenas ele quer substituir parte dos mortos, mas também quer ajudar a recuperar a economia falida, como consumidor e cidadão consciente que é. Nasceu pagando o ICMS em cima das fraldas descartáveis e o ISS de serviços preventivos considerados hoje essenciais: teste da orelhinha, teste do pezinho, teste do coraçãozinho, teste do olhinho, teste da linguinha, entre outros sobre os quais ainda estamos nos atualizando.
Vinícius recebeu da mãe, pelo leite, anticorpos livres de impostos, mas ouviu de soslaio sobre uma nova variante de preocupação do novo coronavírus, detectada na África do Sul. Talvez não seja seu primeiro carnaval o mais animado de todos, com a possibilidade de novo aumento de casos da mesma doença que ocupa integralmente o dia de ambos os pais, infectologistas.
Amamentado pelo menos até os seis meses de vida e se vacinando corretamente, Vinícius deverá morrer apenas perto da virada do século, no ano de 2100. Até lá, espera-se que tenha acesso à água de qualidade para beber. Saindo da Amazônia, seu desafio será ainda maior neste sentido. Não poderá mais consumir tantos produtos na Black Friday (exatamente o dia em que nasceu), porque não haverá, em breve, tantos insumos para a produção deles.
Vinícius deverá viver ainda um tempo entre grupos extremistas que lutam pelo poder. Mas se tudo correr bem, ele viverá tempos de paz no seu país natal, comemorando uma alternância sadia do poder. Não deverá sofrer perseguições ou constrangimentos, caso se descubra homossexual, lá por volta de 2035.
Vinícius terá muita dificuldade em conseguir entrar no ensino superior de qualidade, em função do aumento da concorrência e do pouco investimento no setor. Sendo branco, ele terá mais acesso ao poder e às decisões da sociedade, mas é apenas lutando pela igualdade racial, que foi desvirtuada em seu país, há séculos, que ele poderá andar tranquilo pelas ruas, sem medo de sofrer as consequências da desigualdade e do ódio racial.
Vinícius deverá emitir menos carbono na atmosfera, estando arriscado a, junto com seus filhos, perder a vida em tempestades, tornados ou inundações jamais presenciadas pela nossa espécie. Dificilmente ele terá algum contato com povos tradicionais que habitam a floresta amazônica. Não conseguirá pagar pelo combustível fóssil para movimentar um meio de transporte próprio, individual.
Terá um grau de contato superficial com cada vez mais pessoas no planeta, sem conhecê-las em profundidade. Deverá tomar grande quantidade de medicações para controlar suas emoções, desequilibradas pelas permanentes e duras tomadas de decisão.
Não deverá carregar sacolas de plástico, e precisará usar mais protetor solar e óculos de sol, para evitar doenças causadas pela radiação solar. Comerá pouquíssima proteína de origem animal. Em meio a tantos dilemas e desafios próprios de sua época, Vinícius deverá ouvir sobre líderes mundiais que farão novas propostas para reorganizar a ordem, no pequeno planeta azul. Não estarei lá para aconselhá-lo. Apenas posso deixar escrito hoje que não cometa os mesmos erros das gerações anteriores, e que não pense apenas em si mesmo. Somos grandes árvores, e cada folha importa.